Há duas semanas mostrava nesta rubrica um exemplo de desinformação criada pela comunicação social e de que forma isso pode ser feito. Desta vez, trago um outro exemplo, agora do lado das chamadas revistas científicas.
A ciência segue, normalmente, um método que começa na observação da Natureza e continua com a investigação, teórica ou experimental, até à publicação dos resultados em artigos científicos, normalmente em revistas. Há, no entanto, um factor essencial para garantir a qualidade desses resultados: a revisão dos artigos tem que ser feita por outros cientistas especialistas na área.
A soma destes vários factores atribui, não só um selo de garantia à investigação, mas, ainda, a confiança de que esses resultados podem ser usados como base para investigações futuras. Felizmente, há actualmente um grande número de revistas científicas que garantem esta qualidade, apesar de, em muitos casos, lucrarem significativamente com o trabalho dos investigadores. Mas este não é o tópico em discussão hoje.
Da mesma forma, há muitas outras revistas que, na prática, publicam qualquer coisa que recebam, que depois vais estar disponível na Internet e pode ser usada por qualquer um, para o bem e para o mal. Então aqui vai um exemplo concreto.
No início da pandemia de Covid-19 na Europa, a quantidade de informação disponível começou a aumentar exponencialmente de dia para dia. Notícias verdadeiras, notícias falsas, dúvidas, etc.. No exemplo acima citado temos um artigo com o nome “Surto de COVID-19 na cidade de Cyllage ligado ao consumo de Zubat“. Os autores do artigo são Utsugi Elm, Nasu Joy, Gregory House e Mattan Schlomi, que diz trabalhar no Departamento de Doenças Infecciosas do Hospital Geral de Gotham. Ora, quais são os problemas até aqui identificados:
- A cidade de Cyllage só existe no jogo Pokémon;
- Zubat é o nome de um Pokémon;
- Utsugi Elm é o nome de um professor do jogo Pokémon;
- Nasu Joy é o nome de uma enfermeira do jogo Pokémon;
- Gregory House é o nome do protagonista da série de televisão House, M.D.;
- Mattan Schlomi é um pseudónimo de Matan Shelomi, professor de entomologia na Universidade Nacional de Taiwan que escreve artigos falsos com motivos educacionais e de paródia;
- Gotham é o nome da cidade onde vive, por exemplo, o Batman.
Para além disto, no próprio artigo está escrita a seguinte frase:
“Os epidemiologistas acreditam ser altamente provável que uma revista que publica este artigo não pratique a revisão por pares e deve, portanto, ser predatória.”
Nas referências há citações com títulos como:
- Sinais e sintomas de infecção por Pokérus;
- Publicação predatória, revisão questionável e conferências fraudulentas;
- Surto de raiva num centro de dia para Pokémons;
- Qualidade das publicações, revisão por pares e revistas predatórias;
- Fraude em revistas científicas: chegam a fazer revisão?
- Vamos apanhá-los todos! Comunicar entomologia com Pokémon.
Após a publicação do artigo, o autor descreveu a experiência numa publicação online e, teve como resposta, o seguinte:
“Iremos remover o artigo que serve de base a esta peça devido a não ter pago a taxa de publicação“. Sim, não é por conter informação falsa e ser, todo ele, inventado!
O autor escreveu o artigo com o objectivo de demonstrar o quão fácil é publicar um artigo disfarçado de artigo científico, numa revista que simplesmente não faz qualquer revisão e publica qualquer coisa, desde que se pague a taxa de publicação. No caso desta revista, a taxa de publicação é de 1179 dólares para artigos de investigação e 1479 dólares para todos os outros.
Daqui, é igualmente fácil perceber a facilidade em criar notícias que têm por base artigos com informação falsa e pô-la a circular nas redes sociais. Mas não só! O artigo em discussão neste texto já tem pelo menos uma citação com o título “Os múltiplos efeitos dos surtos de Covid-19“, onde o autor afirma que a Covid-19 foi criada por humanos e é tratável com ervas provinciais. Mais, para além de ter citado o artigo inspirado no mundo Pokémon, citou ainda uma das referências usadas no artigo “Pokémon” com o título Sinais e sintomas de infecção por Pokérus, dizendo que este era o primeiro artigo a identificar o SARS-CoV-2. Quando questionado sobre como é que isto aconteceu durante a escrita de um artigo fora da sua área de especialização, o autor não só não foi capaz de explicar como é que não viu nenhum problema em citar um artigo que nunca tinha lido, como não sabia a diferença entre as revistas científicas abertas e as predatórias.
Ambos os artigos continuam disponíveis online a 12 de Dezembro de 2020, o que mostra também uma clara falha dos governos em fiscalizar este campo, que muitas vezes lucra com dinheiro pago por esses mesmos governos. As revistas predatórias são muito perigosas, principalmente aquelas que publicam trabalhos na área da saúde, pois facilmente levam uma pessoa mais desatenta a acreditar na informação que partilham. Por isso, como sempre, é importante recolher informação de fontes seguras e reconhecidas, ainda que, por vezes, também possam errar, mas, se acontecer, certamente que repararão o erro, ao contrário de muitas fontes duvidosas, que mantêm informação falsa disponível durante meses ou anos.